terça-feira, 14 de dezembro de 2010

Benstar e as galinhas

Na porta das Mercês, vivia um mendigo que não se sabe por quê atendia por Benstar. Sabe-se que nada lhe faltava: pontas de cigarro, que muito aproveitava; bolinhos de oferenda; recortes de grandes bocetas; cachaça e um trapo guarda-chuva pra os dias ruins. Não lhe eram poucos os trocinhos de maconha que lhe atiravam de agrado, trocinhos estes que Benstar ajeitava até a ponta. No céu lavado de Salvador tudo bem lhe caia. Vivia sem problemas, até que os pretores da prefeitura resolveram que ali não podia ser e que ao bem dos jovens e senhoras desta cidade Benstar ali não poderia mais ficar, que buscasse outro canto que lhe aprouvesse entre socos e pontapés pela paz dos passantes. Alertaram-lhe ainda que guardasse seu pau indecente, pois que não se podia comprar na concentração que este exercício exige sem ter o desprazer de pôr os olhos naquele cacete preto e descomunal. Dado braço com o medo dos homens, pacifico e cidadão como era, Benstar agarrado a uma singela e roliça garrafa, que não era besta nem nada, tratou de sair dali encachaçando-se o quanto podia, recebendo pela frente caretas de nojo e dedos nos narizes das gentes de bem de Salvador. Gente feia!”, conjecturou. Acordou três dias depois na porta da Escola de Música avistando em close baixo e, sempre para cima, as pernas magrelas de uma graciosa putinha da Carlos Gomes. Engolindo a noite e um pouquinho mais dos restinhos da bombinha, Benstar ficou a admirá-la, até que esta abaixou-se e lhe soprou com hálito de halls de buzú, com a boca mais vermelha que uma rosa, doces palavras: “clorchard, clochard, quieres vivir a mi lado? Haré de vuestra señoría El mayor de los mayores...”. Atordoado com o bucetão da puta magrela, Benstar resposta não proferiu. Virado no saci, na larica em que estava não entendia palavra que sua fada-madrinha lhe dizia. Resumiu-se a um “hã?” enigmático, canalhamente, como um bom mendigo que era. Sem muita questão, em seu lugar ficou. Diferentemente do seu membro que agora escapulia preto e duro entre braguilhas escancaradas. “Je NE vu hacerte nada, solo Las bienvenidas de los reyes my Love!”, insistía a magrela. Em estado de alegria pretonobranco, Benstar agarrou-se a doçura da moça e deixou-se levar pendurado pelo pau como bom escravo até “O jardim”. Pelo caminho, apreciando o florescer do lixo nas carcomidas calçadas desta cidade  a magrela lhe contava, em bom francês, sua odisséia desde Camaçari, as coisinhas todas dessa vida de meu deus e de como pensava em fins de carreira tornar-se obreira do senhor, que “deveria ter  sido o melhor homem que existiu na terra y aún que tu...” Benstar lhe escutava atentamente com as mãos sacrificadas na parva bunda da moça, assentindo tudo que podia como um enorme X na cabeça. La chegando, o indigente foi agraciado com muitas carícias, galo dono de seu terreiro, cravo senhor das rosas, pavão no curral das vacas. Assim, nosso amigo foi lavado, esfregado, chupado, esculpido e adornado como um Davi. Puseram-lhe roupas de paxá, correram a matar-lhe a fome que Benstar muito tinha, calçaram-lhe sapatos lustrosos, que recusou por força do hábito e lhe puseram em cama cheirosa como a um príncipe. Benstar gozava porque a vida nova era bela, cheirosa de maresia, mangas, carambolas e caruru em dia de sete meninos.  Já quando a noite invadia as janelas a magrela veio apresentar-lhe a dona da casa: uma grande puta velha, gorda e vagarosa que fumava um bale atrás do outro. “Mirad mon petit clochard, nuestra maestra! No tengas medo mon amour...”. Deixado a sós com a gorda Benstar ainda despertando sentou-se na poltrona vermelha diante da mulherona de cabelos brancos que se espreguiçava com as pernas arreganhadas.  “Bonita a senhora!”, disse Benstar acanhadamente notando os apliques nos cabelos e o tilintar do molho de chaves que a criatura carregava no pescoço. “De nada, filhinho..., “Sente-se aqui”. Benstar bem figurou ao lado da velha. “Cê sabe que tão falando de você, cajuzinho?”. O mendigo pendulou em negativa infantil: “Que seu pau é de pedra, filho; um caralhão!... Fique viu, que de mim será de boa serventia... Vá ficando, filhinho, vá ficando!...”. Benstar sorriu enquanto a velha aproximava-se e junto com ela o cheiro canelado do bale que lhe invadia até o cu... “Me deixe ver, filhinho...”. Apreciando as impecáveis unhas vermelhas da velha, Benstar deixou que esta lhe conferisse todo, apalpasse-lhe as partes e lhe cheirasse o cangote como se fosse um ursinho de quatro metros. “É, vai ficando filhinho... vai ficando!...”. “Você é sortudo, filho da puta”, pensou Benstara postando no membro próprio que deus lhe deu. A velha tocou uma sinetinha prateada, apareceu uma mulher enorme, comprida sem roda e preta como a noite. A ela a velha deu-lhe ordens que o apresentasse a casa, que o acomodasse, pois que era seu filhinho e o tratasse bem. Mandou também que o trouxesse a seu quarto mais tarde, “Pra brincar, filhinho!”. E assim sucedeu. Benstar conheceu todo O jardim, como chamavam as putas, passou mão por corrimões e bocetas, afogado no licor de jenipapo, cantarolando “Boneca de trapo, fazendo figura em galharda jogatina de buraco, até que a servente o reconduziu ao quarto da velha gorda. O clochard admirado com o luxo deu-se a tocar as volutas da madeira cheirosa da cama da putona, desenfrascar perfumes, bulinar gavetas e guarda-roupa, afagando-se em macios travesseiros, fazendo graça ao São Jorge da velha que figurava no alto da cama. A velha se ria muito de tudo aquilo fumando e bebendo como uma caipora desgovernada, apreciando o filhinho como se mira as peripécias dos cães. Benstar lhe sorria numa animação de malandro, quando a velha dando batidinhas no colchão lhe disse ternamente: “Vem, filhinho, vem aqui com sua mainha!...”. Na mira de São Jorge, Benstar aproximou-se devagarzinho, sôfrego e canalha, pratinho de punheta pra velha putona. Embiocou-se entre pelancas, calçolões, molhos de chaves, amados batistas, cortininhas de seda e travesseiros cheirosos. Benstar adentrou na velha como quem se atira no mar. Deixou-se a toda sorte de vícios, posições e facetas do amor de mãe, memorando o bucetão da magrela na noite de concreto avariado da cidade. A velha gemia assentadíssima com seu molho de chaves e balangandãs. Enfim, tudo se deu gostoso até embaixo até que o levaram ainda desfalecido para seu quartinho. Pela manhã, nova graça de gemadas, ovos de codorna, caldos de mocotó e sururu fresquinhos da barca de Romualdo Peixeiro, delicias irresistíveis na mesa do mendigo. Nosso amigo gozava por que a vida era bela. Além do mais, era zero oitocentos: o caldo gostoso, as mangas doces, o sarapatel fresquinho e aún que tú, etecétera... Os dias iam cravando datas, Benstar de harém e labuta era o filhinho que deus deu, adorado pelas putas, boas donas e deus servido lá elas. O Jardim era divertido, cimento e varanda, véu e olho do mar. À noite, a casa enchia de clientes de toda sorte e gosto. Podia-se conhecer a gente sabida e dirimida desta cidade e até do estrangeiro. Havia umas figuras estranhas que Benstar pouco compreendia, mas como bom filhinho, fazia o que sua mainha lhe pedia: “Trate bem, filhinho..., gente de casa!”. E o mendigo obedecia e, por vezes, muito a contragosto. Um desses desafetos era Pastor, homem caolho que tinha negócios com a puta velha. Coisas de criatório de galinhas. Pastor trazia as criaturinhas do interior e a velha as revendia abatidas nos açougues da cidade. Bestar inquietava-se na presença do caolho. Memória das galinhas “pobrezinhas”. Chagava mesmo a escutar o chiar das penosas, a aglomeração e o calor: “Êta porra que galinha é bicho que sofre!”. De onde vinha Pastor, ninguém sabia. Alguns diziam que era paulista, enfatizava sotaque duvidoso, por isso, outros já falavam que há muito tinha saído da Paraíba, coisa incerta como o seu sotaque avariado. O certo é que todo o Jardim sabia que Pastor morava no Itaigara com o negócio próspero das galinhas e que ganhara esse nome, porque gostava de semear no ouvido das meninas versículos bíblicos durante o serviço: “Seu umbigo... essa taça redonda onde o vinho nunca falta...! Cântico dos cânticos, meu amor!”. A magrela era de umas que adorava: “El buen Pasteur en fudición de arebol, jê suis mon amour; oh merde, oh merde y aún que tú...”, gemia gostoso a seca, em francês camaçariense,...  Benstar vivia descompassando com esse sujeito, principalmente, depois que este fora fazer queixa com a mãezinha sobre seus privilégios no Jardim. A velha lhe respondia que não se metesse com Bestar, porque esse era o xodó da sua casa e porteiro do seu coração: “Tire seu pau daí, Pastor!”. Mas Pastor parecia enciumado, sentia que perdera terreno dadas regalias que Benstar tinha na casa, “Pau preferido das meninas!”. “A senhora vai deixar esse diabo mandar aqui, mãezinha?”, questionava Pastor, enquanto não tirava os olhos de Benstar. “Esse corno já tem até as chaves daqui de casa”. “E desde quando essa casa é sua zóião? Deixe de história...”, disse a puta velha. Pastor enciumado resolvera que certo dia levaria Benstar pra o despachar galinhas na Sete Portas. “Se a senhora quiser mãezinha levo seu preferido pra despachar...”. “Faça isso, quero que filhinho fique a par de meus negócios”. “Esse pau de ouro!”, disse gracejando o Pastor!”“. E assim tudo se deu. Na tarde fatídica, Pastor passou de Eco Sport pra buscar Benstar, mas não levou à Sete Portas como tinha planejado a velha. Levou ao seu a.p. no Alto do Itaigara. La chegando, feito galo velho, foi se aproximando do mendigo em tom de reza nova: “Tá gostando, caralhão?”, Pastor buscava impressionar o clochard mostrando móveis, abregueces eletrônicos, um pau duro e um copo de uísque de origem duvidosa. O clochard aceitou a bebida sem muito interesse, sentado no sofá branquíssimo de Pastor, demonstrava enfado, o que deixou o caolho irritado. “Qué que é, caralhão? Vai dizer que tu que é um merda da rua não tá gostando do meu a.p.? Vai ficando, filhinho...?”. Benstar não proferia palavra, lambia as bordas do copo de uísque buscando irritar ainda mais o caolho. Mas Pastor já não se importava. Aproximava-se acariciando o mendigo, enroscando-se entre suas pernas, roçando em seu cacete, buscando alento pra o que ele nem sequer sabia. O mendigo, maquinalmente, pôs-se em serviço. De mirada na bunda branca de Pastor, pôs pau a serviço o que o fez uivar de felicidade, recitando seus trechinhos, enquanto assistia a cidade se acender pela janela da sala. Benstar o comia sem gosto e enojado, sem brincar no serviço. Saciado Pastor, banho tomado, o clochard sorriu incrédulo pra aquele homem porco e caolho que ele bem sabia que se não o fodesse ele o foderia primeiro. Na saída, Pastor aproveitou pra tirar mais lasquinhas do clochard, já francamente irritado com o desdém de Benstar a seu a.p. e a suas investidas. Caminharam pra o despacho das galinhas na Sete Portas, mas Pastor não saltou do carro, apenas deixou instruções: “As que estão separadas, Caralhão, são essas! Basta entregar que depois eu assino a papelada”. Do carro, Pastor saltou um beijo adocicado pra Benstar: “A gente se vê em mãezinha!” “Vai, filho da puta”, pensou o mendigo. Se refazendo, Benstar adentrou o depósito.  Pena por pena, estavam todas lá. Amontoadas, as galinhas rechonchundinhas, atordoadas, engaioladas em neurastenia muito própria da espécie. Debatiam-se em suas caixas de plástico, ensaiando voos inúteis, prontinhas pra o abate. Na câmara das escolhidas, o clochard pensava na bunda branca de pastor, na empáfia da puta velha, em seus molhos de chave naquele pescoço grosso, nos perfumes, no bale, nas luzes da cidade, no coração da magrela. A imagem de São Jorge, o bucetão da seca, as mangas e caldos de sustento. Tudo lhe queria varrer a mente: os versículos de Pastor que lhe invadiam os ouvidos, a pele e até o rabo. A casa do caolho e sua insânia de merda. Benstar esforçava-se por se livrar de tudo aquilo. Enojado, esfregou-se. É que naquele momento o mendigo buscou limpar-se, porque, pela primeira vez, se sentia sujo no poço de gritos das galinhas, naquele poleiro imundo, naquele embaraço de cocoricós e chiados angustiados. Benstar gritou tão alto que se pode ouvir no Comércio: “Tome no cú, porra! É galinha é, aqui, viado!”. E a Sete Portas escancarada de ira nunca viu tanta galinha junta. Foi uma festa! Era galinha desesperada parando carro pela pista; era galinha no saco de lixo entre urina e resto de caldo de cana; era galinha enfiada no saco pelo povo da rua; era galinha tentando voo pelos postes, pulando muros e balcões, arremessadas em galhofa ao suicídio dos carros de milho, atropeladas sem pai nem mãe, catando restos de cachorro quente, molestadas pelos moleques, cismadinhas na calçada, uma desgraça! Benstar sorria satisfeito atirando as galinhas da puta velha e de Pastor à liberdade, rangendo dentes entre penas e cocôs; sorria desengaiolando aqueles semi-pássaros nervosos, impondo-lhes a rua, destinação mais certa que aquelas jaulinhas de plásticos em que estavam metidas as criaturinhas. Sorria desabotoando as calças, escancarando o pau, arrancando aquelas roupas, entre gritos de “puta velha” e “sacana maldito”. Gargalhava Benstar de volta à sua cidade, à rua que era sua sem molhos de chave. Gargalhavam sem dentes os donos da fome, que comeram galinha ao torto e ao direito naquela semana. Gargalhavam os ladrões no semáforo e todo o povo da feira que já aprontavam mais um dia. Cacete armado, de manhãzinha, quando chagaram a mãezinha, Pastor e a polícia. Benstar já estava longe, assim como a confusão que custara a acabar, desde quando a notícia de que se estavam “distribuindo galinhas ao povo” se espalhou pela cidade. O clochard, completamente nu, já saltava ao mar da Gamboa como quem estar a par de outro mundo. Banho tomado, alma lavada, recolheu-se novamente em seu antigo ponto na porta das Mercês sem lamentar a magrela, o bem bom da casa da puta velha e os abregueces tecnológicos de Pastor. De pau a postos, pronto pra outra, Benstar agora tinha seu próprio lema e um cacete preto descomunal sem molhos de chaves ou balangandãs: “Liberdade às galinhas!”, gritou o clochard assustando os padres.
  
 *Letícia Reis

quinta-feira, 25 de novembro de 2010

Quartinhas de Aruá 2010

Espetacular presença das pessoas negras nesse encontro de literatura baiano. Ver as pessoas unidas, trocando bençãos e saudações, cantando e contando histórias, referenciando nossos ancestrais e memórias indiviuais-coletivas. As Quartinhas de Aruá - encontros de literatura negra, está retomando depois de um ano suas atividades com todo gás e energia. Com a mesa formada por Ele Semog, Urania Muzanzu, Hamilton Walê e Lande Onawale como mediador, deu um brilho fascinante na noite de 24 de novembro. Junto ao lançamento do livro "tudo que está solto" de Ele Semog, poesias de Tom, Giovane, Limeira podem ser compartilhadas ao gosto suave do aruá, acaçá, frutas, pipocas e doces. Assim como a lembrança de quartinheiros do orum: Jonatas Conceição é sempre uma saudade viva. Todas as presenças foram ímpares, e serviram como "carregadores" da força dos quartinheiros a fim de acelerar o acontecimento de outros encontros tão negros e lindos como desta noite de quarta-feira.

Ana Fátima dos Santos

segunda-feira, 7 de dezembro de 2009

ESPELHO...

Espelho...


Momento de afirmação!!!!

De identidade estetica!!!

De poder ou de fraqueza.



Espelho...

Objeto de estudo!

Aonde me compreendo!

Espaço aonde sinto a força da minha raiz...

AH! Mãe ÁFRICA!!!!


Espelho...

A negritude te venceu!!!



*Sivaldo Reis

sexta-feira, 20 de novembro de 2009

No ritmo do banzo

Com o coração apertado o sofrimento lateja!



Não, essa não é mais uma de amor.


Olho pr’o lado, só olhos atormentados – o medo. Do outro lado, a boca fala outras línguas ou a mesma. A minha, seca num grito silencioso. Nem todas as bocas gritam o medo. Muitas calam-se.


As mãos, não as sentia mais. Nelas pingava o suor que escorria do corpo. O corpo do outro. Tantos outros que a conta se perdia em meio à escuridão e ao embalo do mar.


O sofrimento se multiplicava em olhos, boca, suor e nos outros, tantos aflitos.


Tensão. Fuga.


Em alto mar são raras as chances de saída. Aqui, elas não existiam. As correntes são fortes e se prendem ao meu grito, ao suor, ao sofrimento de todos. Todos juntos num só murmúrio.


Tristeza e nostalgia – banzo.


Meu murmúrio era calado. Não suportava aquela agonia.


Suor, sangue, sofrimento, murmúrio.


Dor no peito. Tontura. Espuma. A idade já pesa. O banzo se esmera em alto mar. O grito não sai. Todo grito é suportável ao lamento da dor. Mas esse não o era. E eu ali sentado, entre correntes e corpos. Tantos.


Suor, sangue, dor, espuma, murmúrio – morte. Tão lenta quanto o último pingo do suor no seu rosto. Como um bom ser humano, pensei: antes ele do que eu.

Ver sofrimento alheio é imaginar-se livre de algumas dores.


Logo vi escrito na tua face: antes aqui do que lá.


Perguntei-me onde. No ritmo do banzo, a história te conta.

A mais corriqueira delas.


*Andreza Conceição
Licenciada em Letras vernáculas pela UNEB, graduanda em Pedagogia pela UFBA.

terça-feira, 27 de outubro de 2009

Caruru

O menorzinho comeu logo três pratos; esperou mais tempo e ainda pegou a gamela _não se importou de sujar as mãos. Alguém pediu que limpasse ouro no pano branco. O maior era retraído, mas o menor destemido obedeceu. Depois soprou as mãos que parecia brincadeira: cantou forte o já comeu, cantou o já bebeu e o que está fazendo aqui. Esperou mais, prudente que era, lá no cantinho da sala, juntinho da mesa, perto dos maiores que aguardavam a vez. “Esse aqui ainda não teve, não é menino?”. Ele assentiu numa esperteza de sobrevivente, contando umas sete moedinhas no chão, onde os pés não se iam; nem os dele, nem os de ninguém, todos cuidavam de evitar aquele canto. Mas, pra minha surpresa, em novo instante, o peguei curioso admirando a oferenda no fundo da casa, pois gostou muito foi de ver as velinhas coloridas e, se não me visse olhando de cá, ia firme no mel do santo. “Essa não pode!”. Ele riu-se todo com os olhos cutucando o maior descrente. Alguém contou os pedaços de galinha em seu prato comparando os sortidos, outro lhe dera umas balas em segredo. “Espera a galinha gorda!”, ordenou o velho passando com os sacos grandes enchendo as vistas de todo mundo, até dos que entraram sem ser chamados. Enquanto isso, a criançada do lado de fora se engalfinhava numa confusão danada atrás da galinha gorda, mas ninguém conseguia passar pra dentro. Foi um pega daqui, um pega acolá, puxa as calças de um e outro, segura o rabo de cavalo das meninas e tome sapato e sandália pra todo lado. Aquilo era a felicidade que vinha doce numa chuva de balas tomando conta da rua toda:”Essa é minha!”, gritou um catando no chão. Um magrinho só de meias escapou com os bolsos cheios e a boca dourada de dendê, rindo como um gaiato depois de levar vantagem no empurra, empurra....La dentro, alguém consentiu a cabeça e o Erê desceu, a roda ficou animada e as palmas uniram-se ás vozes. Um rapaz riu também da traquinagem do menorzinho, que ensaiou um samba miudinho, antes de ser puxado pela manga da camisa; fora mandado para o canto: “Aqui não pode, energias, espere aí!”. O maior, gostando de tudo ver, abaixou-se pra segurar a barra branca da saia da menina:”Oxe!”, a coisa tava foi boa. Eu só sei é que lá pelas tantas, no lajedo da frente, foi uma graça ver o cansaço das crianças barrigudinhas de tanta farra de comida. Alguns tomaram a benção de Mainha cheios do merecido respeito, como gente grande. E assim, de praxe, não faltou quem perguntasse: “minha Tia Preta, aquele quiabo grande, eu comi e agora?”. Ela respondeu, contente que só ela: “Agora é sua vez!. É com você, Cosme, Damião e Doum!”. Omi Beijada!

*Letícia Reis
Graduanda em Letras Vernáculas pela Universidade do Estado da Bahia - Salvador - poeta e cronista

terça-feira, 20 de outubro de 2009

Política dos ressentidos não é só a dos outros

Certos anarquistas gostam da condição de miserável e de explorado: duas palavras que possuem, para eles, uma espécie de brilho sedutor e que, depois de promovê-los gradualmente em suas carreiras, dão-lhes um pedestal elevado e agradável ao seu amor-próprio. Através delas, fazem-se mártires e salvadores ao mesmo tempo: no seu gosto plebeu quase perecem do próprio nojo e da compaixão como pena imposta a si mesmo; no seu ofício de justiceiros pretendem inflamar esperanças no outro. Não raras vezes, esquecem que as palavras estão cheias daquela mesma vida infame, segundo a segundo.
Reclamam-se "anarquistas sociais" e sustentam a mesma prática dos liberais: tomam a "sociedade" como objeto da sua política nomeando como inserção social o que os liberais chamam de política social e assistencialismo; ignoram que social é uma estratégia liberal de pacificação, visando um modo específico de organização da sociedade precisamente na intersecção entre indivíduo e Estado, entre civil e político. Tola maneira de desejar distinguir social de individual, próprio ou de estilo de vida.
São intransigentes como os plastificados moralistas; trazem no cérebro juízos e convicções que fermentam sua ânsia de poder. Não são menos polícia por não terem farda, nem menos juízes por não carregarem toga: impotentes no seu governo e tribunal apegam-se a um efêmero autoritarismo, confundindo o brilho litóide anarquista com o ouro de tolo garimpado por um inocente crente no bom e no bem.
Ana Carla dos Santos
Graduanda em Pedagogia pela Universidade do Estado da Bahia e em Psicologia pela Universidade Federal da Bahia, poeta.

sexta-feira, 16 de outubro de 2009

Nossa Identidade

Amar...querer...poder,
Sinônimos de um ser,
Expressões de uma identidade confusa,
De uma pergunta culta,
Quem sou?

Diversos traços trago no linear de minhas características;
Diversas idéias confusas,
Afinal, como desenvolver a nossa identidade?

Diante a realidade ao qual vivemos
Devemos seguir ao máximo o nosso desenvolvimento
E ir em busca do autoconhecimento.
Qual a minha identidade?





*Fagner Chagas
Estudante, poeta e ator

Rastafary man, Dube

Grande fé e luta!
Não se fariam presentes
Se não fosse seu canto
Cantou nosso sofrimento e nossos sonhos
E em cada canto deste mundo
Nós, irmãs e irmãos nos encontramos
Em nosso doce e resistente colo.

Prisioner, prisioneiros somos
Mas o desejo de pulverizar este sistema
Fez com que muitas casas
O tivesse como mensageiro, pai.
Minha família hoje canta a sua ida, Lucky.

Não existe guarita. Deve existir?
E no respeito apertado em nosso povo
Minha família, sua família
Nossa África recanta irmãos:
Peter Toshy, Bill Holliday,
Bob Marley, Felá Kuti,
Rastafary man, Lucky Dube.

*Aará
Estudante da vida

Industria Africana!!

Há uma sangria desatada em meu sangue.
Ele sanguessuga-me a mim!
Meu samba de roda!
Quem samba?
Eu sambo!

(Refrão)
Batuque,
Pandeiro,
Meu canto,
Guerreiro.
Eu canto!
Primeiro
Minha voz,
De encanto!
Meu santo,
Terreiro!

O samba me leva, carrega e me guia!

E eu sinto a mãe África na sola do pé!
E eu sinto meu nego, que ela me qué!
E eu sinto a mãe África me dá alegria
E eu sinto que sinto que o samba irradia,
E que a liberdade dos cantos de outrora me guia!

Quem canta?
Eu canto.

(Refrão)

E todo dia eu sambo,
Eu quebro, rebolo, me embolo.
Meu samba, eu quero!
Que quero, que quero!

(Refrão)

Eu quebro a corrente do teu pré-conceito.
Minha pele me diz de onde vim bem primeiro!
E de lá me orgulho,
Dessa terra de outro mar.

E é lá que um dia eu sonho em voltar a pisar!
Aguarda minha mãe,
Este dia há de chegar!

Quem toca o pandeiro?

Eu toco!

ChicO, sambando pra danar!

*ChicO
Compositor, poeta

quinta-feira, 8 de outubro de 2009

Intensamente

Quero sentir a palavra nascer do ventre da tinta
E rasgar o papel que a segura
Contornar a perfeição de Machado
Beijar a garota de Jobim
Dar amor aos amantes amados.
Quero que as palavras voem, gritem!
Em todo o canto, encanto.
E seduza, seduza...
E enrolar, encaixar.
Envolver, trepar...
Com as letras e com a imaginação dos que as lêem.
Quero fingir que acredito nessas palavras, sem ação,
Que enganavam (e enganam) meu coração,
Mas apagaram-se como as letras na areia;
Mas esqueceram-se como as palavras do ex-amor.
Quero viver e morrer aos noventa,
Tocar nas rugas e ter coragem
De sentir a palavra nascer do ventre da tinta
E chorar por ter acreditado...
Quero vê as palavras se apagarem dos meus rascunhos
Assim como da minha voz.
E morrer como a vida de uma borboleta:
Rápida, mas bela.
Por ter voado com palavras na mais insensata forma de viver: amando.


*Ana Carla dos Santos
Graduanda em Pedagogia pela Universidade do Estado da Bahia e em Psicologia pela Universidade Federal da Bahia, poeta.

É isso...

Nossos pés pisam solo, solo racista!
Somos diariamente fuzilados
Pelas armas da polícia.
Não podemos adentras em bancos, shoppings...
O olhar do opressor é fatal
Entrou preto é marginal.
Nossas faculdades são as ruas
Somos mestres e doutores
De uma realidade crua e nua.
“Nossos” ônibus andam lotados
Pela tarifa que pagamos
Seria absurdo pensar em ar-condicionado?
Estamos todos desempregados
Sem dignidade não há paz
Isso está mais que provado.
O que será que nos denuncia...
A negritude de nossas peles?
O que há nisso de absurdo?
Certas reflexões me deixam mudo.
Mas não tão mudo pra dizer o que sinto,
O que penso e o que vejo
Dentro de uma Salvador que não nos salva.

“Sinto que a poesia preta
Necessita se aproximar um pouco mais
Da simplicidade, pois, nossa literatura
Não é apenas glamour, mas, um grito revolucionário.
E é justamente por isso
Que tento em meus versos, fazer parte dessa revolução.”

*Sivaldo Reis
Graduando em História pela Universidade Federal da Bahia - UFBA

segunda-feira, 5 de outubro de 2009

Prá gostar de ser

Ébano, ônix,
Azeviche, jaboticaba.
Olhos de rubi,
Cabelos de mata, torcidas raízes,
Naturais, ornamentais.
Presença revivida
Dos nossos ancestrais.

A síntese
Da noite, petróleo, carvão,
Açúcar cândi, chocolate, mel.
Doçura, alegria, beleza,
Luta, conquista,
Certeza.



*Ana Célia da Silva
Professora adjunta do DEPED/Campus I e militante do M.N